sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Robledo, parte 6: lá e de volta outra vez.

Eu tenho o problema de ser apresentado as pessoas e me esquecer delas segundos depois. É tipo uma memória de peixe, ou algo que o valha. Minha esposa sempre reclama disso, mas não faço por mal. Agora imagine para alguém com quem eu conversei muito rapidamente, sem nem me apresentar ou ser apresentado.

Foi o que aconteceu com o Carlos.


Cheguei no ponto e lá estava um senhor esperando o ônibus, não o mesmo que o meu, mas outra linha. Cumprimentei-o e ele retribuiu. Sentei-me ao lado daquele estranho, para descansar um pouco, me protegendo do sol escaldante que castigava a cidade.


Ele olhou pra mim e sorriu, e perguntou em espanhol se eu tinha visto os dragões. Respondi que a igreja estava fechada, e só então me toquei que ele tinha vindo da estação de trem comigo, no mesmo ônibus, e eu, na ânsia por informações, tinha contado o objetivo da minha missão.


E ele, como bom robledano, lembrou, mesmo que eu tivesse esquecido que já o conhecia.


- Cerrada... - disse, sentado ao lado dele, apoiando-me com as duas mãos no banco de ferro.


E começamos a conversar, e ele disse que sabia que eu era brasileiro, pois em determinado ponto do papo eu tinha usado um "ninguém", e ele já tinha estado no Brasil, e reconheceu o som da palavra. Conhecia o Rio, São Paulo e até BH. Me contou um pouco da vida dele, e me perguntou de novo sobre a igreja.


Rimos juntos sobre ninguém na cidade saber se a igreja estava aberta, os horários de visitação, principalmente de algo tão notório.


E foi aí que ele me deu a dica que me fez entender a minha conversa com a minha amiga costureira, láááá atrás. Ele lembrou que a igreja estava em obras, e por isso não estaria aberta, mas também me disse que as missas, por esse motivo, estavam sendo no salão de esportes da cidade.


E aí, num flashback na minha cabeça, a conversa com a minha amiga do degrau fechou. Era isso que ela tinha me dito. Depois do bar Astúrias, ela me deu a indicação de como chegar ao salão de esportes, mas eu perdi essa informação no espanhol...


Carlos olhou o relógio e disse Se você correr, ainda pega o finalzinho da missa do Sr. Cura. Se ele não souber os horários da igreja (e dos dragões), ninguém mais saberá.


Novamente o misterioso Sr. Cura voltava a dar às caras. E eu fora salvo no último minuto por mais um amigo que eu fizera, sem querer, apenas por tentar aprender um pouco mais sobre a cidade dele.


Carlos, nunca vou esquecer o que fez por mim. Não sei se um dia lerá esse post, mas saiba que a história só continua POR CAUSA DE VOCÊ.


Saí em busca do padre, um senhor de quem eu sabia apenas o estranho sobrenome: Cura.


No caminho pedi informações sobre onde era o complexo esportivo (o Carlos tinha me dito, era uma construção grande, eu identificaria facilmente. Siga a rua, vire a esquerda e depois a direita na bifurcação.


Batata. De longe vi o que parecia ser um grande ginásio. Caminhando apressado, me dirigi para um corredor que dava para a entrada da igreja improvisada. Mas havia uma pickup, e nela um cachorro enorme, um fila talvez, olhando pra mim. Me afastei respeitosamente devagar e desviei do meu caminho. O ginásio tinha outra entrada, mas estava fechada, com uma madeira bloqueando a passagem. Não poderia entrar, mas poderia acompanhar a missa. Estava cheia, e ali fiquei, matutando como voltaria pra entrada de verdade, sem ser devorado vivo.


Eu morreria vergonhosamente, devorado por um cachorro numa cidade habitada por dragões.


A missa terminou e eu não sabia o que fazer. Tinha medo que se virasse a esquina o cachorro me veria, e aí eu estaria ferrado.


É constrangedor, mas confesso que só tive coragem de ir pra entrada depois que vi as crianças saindo da missa e passando do meu lado. Ao chegar na entrada, o tal do cachorro tinha ido embora (talvez por causa das minhas orações).


Ali estavam diversas pessoas da cidade, bem vestidas, despedindo-se umas das outras e também do padre. Eu era o único de mochila preta e cinza gigante (o Tyrion caberia dentro dela), calça jeans e T-Shirt da Fringe Divison, Department of Defense. Se você colocar a variável de alguém com essa indumentária procurando dragões medievais no interior da Espanha, aí mesmo que só vai dar eu. A minha esposa disse que as pessoas do povoado deviam estar já comentando sobre o forasteiro, talvez fugido da base da NASA, um ser mais estranho que répteis escondidos debaixo de séculos e de camadas de cal.


Ansioso, aguardei a minha vez para conversar com o padre. Claramente ele conhecia cada uma daquelas pessoas, e falava muito carinhosamente com elas. Ele devia ter a minha idade, talvez um pouco mais. Pelos meus cálculos, eu não podia passar à frente de quem tinha estado na missa, mas também não poderia esperar muito, com medo de que o tempo do padre fosse escasso, e não desse tempo de conversar comigo.


Posicionei-me e puxei papo com uma moça que estava com a filha.


- Tu sei italiáno?

- Non, non sono... soy brasileño.

E contei minha história, esforçando-me ao máximo no meu portunhol. Lá pelas tantas, apontei disfarçadamente para aquele homem de batina, com uma imensa cruz no peito, trajado obviamente como um sacerdote, e perguntei a ela Esse é o Sr. Cura?

A moça riu, e disse É o Sr. Antônio.

Não era possível. Aquele NÃO era ele?

- Non é o signor Cura? - verti para o italiáno.

Ela sorriu e disse También.

Eu falei então, brincando, Ah, são la misma persona!

E chegou a minha vez. Abordei-o e contei o porquê de estar ali, e para a minha grata surpresa, ele falava um pouco de português e muitíssimo bem o inglês.

A igreja está fechada de segunda a sexta, pois está em obras. A missa de domingo está sendo feita provisoriamente aqui, mas sábado, temos de 11h as 14h para visitação. Se você puder voltar semana que vem...

Contei-lhe que ficaria em Madrid até início de Setembro, e que com certeza retornaria. Sábado era, então, o dia D.

Agradeci ao meu novo amigo, e anotei os dados num cartão velho que tinha na mochila.


Aqui cabe uma rápida intervenção. Depois, mais tarde, conversando com a minha esposa e com amigos de Madrid, descobri que Cura, Pároco e Padre são praticamente sinônimos...

Não, o sobrenome dele não era Cura! O Antônio, que tão bem me recebeu, e me disse Muito obrigado pela sua visita, apertando a minha mão naquele dia, quando nos despedíamos, era O Cura, e não mais um representante do que eu pensei ser a família dos Cura...


Aff... E isso também explica a brincadeira feita pela moça com quem eu puxei papo... um alienígena apontando para um homem de batina verde, com uma cruz branca gigante no peito, falando com todos depois da missa que ELE tinha celebrado... e que perguntou Esse é o padre?


Não seu idiota, ele é o padeiro, ela devia ter respondido.


Parti dali aliviado, a viagem não tinha sido em vão, afinal de contas. Agora eu tinha una fecha e horarios, e tinha falado com a pessoa certa. Como um certo monge que conheci ano passado, tinha ido em busca do meu sonho.


Desci para a Plaza de España, tirei mais fotos e fui almoçar na padaria dessa mesma praça.


Mas Robledo ainda teria mais surpresas para mim.


Depois do "almoço" (uma espécie de croissant salado, uma coca-zero e um café) fui para o ponto de ônibus. Levava comigo mais uma coca-cola e uma mega palmera, um doce de chocolate, como provisão para a viagem. Seriam 1h20m até Madrid. Aquelas eram as minhas lembas.


No ponto, mais um curioso aspecto de Robledo se mostrou: havia outras pessoas que tinham descido comigo, e elas voltariam comigo em direção a capital, no mesmo trem. Entendi que aquilo era comum, e ali sentado, esperando o ônibus naquele silêncio, senti uma paz difícil de se ter numa cidade grande. Não havia ninguém reclamando de atrasos, nem mesmo de ter que esperar, pois aquele era o ritmo da cidade.


Mas a surpresa não era essa. Comigo voltaria, em direção a Madrid, um casal de senhores com quem fiquei conversando. Não lembro de seus nomes, infelizmente, mas foram muito agradáveis comigo. A senhora ficou empolgada quando disse que minha esposa estudava Flamenco. Ela disse que era de Córdoba, Andalucía, uma região de tradição nessa dança. Conversamos sobre o Brasil, e ela ficou feliz de saber que eu tinha conseguido informações sobre os dragões. Ela também conhecia o Sr. Cura...


O marido dela me perguntou se eu fazia Capíra. Demorei alguns minutos para entender, mas respondi que não, eu não praticava Capoeira...

Pegamos o ônibus, e na estação eles foram dar um passeio enquanto o trem não chegava. Tínhamos ainda 50 minutos pela frente.

Pois fomos embora, deixando Robledo, que eu descobri que também era novidade para ela. Sim ela também era uma estranha naquela terra! Fomos até o transbordo de El Escorial, e de lá até Villalba, onde eles moravam. Antes de saltar ela se levantou do assento e foi até mim. Apertou a minha mão. Me desejou uma boa viagem de volta ao Brasil, e eu disse Me gusta mucho ter te conocido, e ela me respondeu com um sorriso.

Era o fechamento da minha viagem. A sociedade do anel tinha sido criada, e eu tinha visto as duas torres da igreja. Aguardaria até sábado para retornar.

Naquelas duas horas eu não vi um dragão sequer, e a vida me mostrou, mais uma vez, que devo sempre esperar o inesperado, pois ele é a única certeza. Por mais que tivesse me planejado, não tinha me preparado para aquilo. As coisas nunca saem exatamente da forma como queremos, e essa é a variável humana da equação. O mapa nunca está completo até que se percorra todo ele.

A descoberta na catedral sacudiu o povoado. E, apesar de eu não ter visto dragões, agradeço pela oportunidade de ter visto PESSOAS, receptivas e felizes com o interesse que estrangeiros como eu tinham pela cidade, um interesse escondido desde o século XV, debaixo da cal que cobria o teto da igreja.



Continua...

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